Em junho de 1878, o Conselho
de Estado, presidido por João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, autorizou o
prolongamento da Estrada de Ferro de Baturité e a construção da Estrada de
Ferro de Sobral. O movimentado Porto de Camocim foi a justificativa da escolha.
A inauguração do primeiro trecho, entre Camocim e Granja, ocorreu em 15 de
janeiro de 1881. A Estação de Camocim era o ponto inicial da Estrada de Ferro
de Sobral e o Porto se desenvolveu mais ainda com a ferrovia.
Hamilton Pereira, 78, engenheiro aposentado da Rede Ferroviária Federal
Sociedade Anônima (Rffsa), filho e neto de ferroviários, memorialista, coautor
do livro "Estradas de Ferro do Ceará", lembra que a ideia era
continuar a construir até chegar ao Piauí, por Crateús. "Camocim era um
porto de grande atividade, que trazia produtos manufaturados para o Ceará. Em
1910, quando os ingleses assumiram, já estava perto de Ipu. O trem chegou em
1912 a Crateús.
"A presença dos trens e sua interseção com os navios contribuiu
para que Camocim se tornasse um pequeno centro cosmopolita como, de resto, em
menor grau, acabou por ocorrer com as demais cidades alcançadas pelos trilhos
da ferrovia sobralense", afirma Carlos Augusto Pereira dos Santos,
historiador e professor do curso de História da Universidade do Vale do Acaraú
(UVA), no livro "A Nostalgia dos Apitos: a Estrada de Ferro de Sobral 40
anos depois da partida do último trem (1977-2017)".
A linha da antiga Estrada de Ferro de Sobral chegou ao seu ponto máximo
em Oiticica, na divisa com o Piauí, em 1932, dezoito anos antes de Sobral ser
unida a Fortaleza pela Estrada de Ferro de Itapipoca (1950). Esses dois trechos
passaram, então, a constituir a Linha Norte. Em 1957, passou a ser uma das
subsidiárias da Rffsa. Os trens de passageiros percorreram o Ramal
Camocim-Sobral até agosto de 1977. Em 1996 foi arrendada à Companhia
Ferroviária do Nordeste (CFN).
Interesse comercial
O professor Carlos Augusto, autor também do livro "Entre o Porto e
a Estação: cotidiano e cultura dos trabalhadores urbanos de Camocim
(1920-1970)", explica que já havia uma concessão da Estrada de Ferro de
Sobral desde os anos iniciais do século XIX. "No Brasil, tem um período,
entre 1859 e 1889, em que o Estado Imperial demandou um maior número de obras
de infraestrutura. Na época, já tinham sido construídos mais de 10 mil
quilômetros de ferrovias. No caso do Ceará, já havia concessão desde o início
do século XIX, mas só no fim do século, com a seca de 1877, foi que essa
estrada foi construída", relata.
O professor lembra que essa Linha começou em 1877, de Camocim, porque a
ideia era ligar o Porto aos sertões de Sobral e, posteriormente, ao Estado do
Piauí. "O interessante era que, a princípio, era para socorrer os
flagelados da seca, mas, a posteriori, teve a justificativa do escoamento da
produção, principalmente do algodão. A passagem de Camocim a Sobral atendia
mais os interesses dos comerciantes de Sobral, que já exploravam o Porto de
Camocim. Essa ligação porto-ferrovia fez com toda a região se desenvolvesse e,
ao longo dela, fossem surgindo outras cidades, a maioria no leito da
Ferrovia", conta.
Camocim pertencia a Granja naquele momento inicial. A emancipação, em
1879, mostra a importância da ferrovia. "Não era só escoamento da
produção, era um transporte de massa também, que favoreceu os contatos, os
negócios, a comercialização, foi trazendo para as cidades também a ideia de
modernidade, as cidades começaram a crescer urbanisticamente no entorno da
Ferrovia. Da mesma forma, quando, em 1977, quase um século depois, esse ramal é
desativado, começa um processo de decadência dessas cidades", resume.
Outra
dinâmica
O historiador relata que,
antes dessa ligação, só ia a Camocim quem tinha negócio, pois era um fim de
linha. "O Porto já trazia produtos antes, mas a Ferrovia dá uma outra
dinâmica, encurta as distâncias, garante celeridade, movimento entre esses
lugares, as relações comerciais tomam um outro rumo, a modernidade chega",
avalia.
Ele acrescenta que a ferrovia
transportava muito mais: as notícias, a moda, o consumo. "Tudo isso a
ferrovia trazia porque ela comunicava esses lugares uns com os outros. Antes
não tinha essa ligação, a não ser em estradas muito ruins, em lombos de
animais. A dinâmica muda. Esses lugares passam a ter vida própria e basicamente
no entorno das estações", destaca.
Segundo suas informações, além
do algodão, todos os produtos de base agropecuária eram escoados, como a cera
de carnaúba, a oiticica, o sal, o combustível. "Nos jornais antigos, é
possível constatar a relação das empresas importadoras e exportadoras com uma
grande variedade de produtos", ressalta.
Carlos Augusto lembra que a
literatura é pródiga em mostrar como esses lugares eram interessantes,
principalmente no fim de tarde, quando o trem passava. "As pessoas
esperavam isso às vezes como a única diversão do lugar. Esse ir e vir de
pessoas, essa chegada e partida de mercadorias. Tudo isso foi proporcionado
pela Ferrovia", conta.
Um chiste histórico: as
novidades chegavam pelo Porto de Camocim e passavam primeiro por Sobral. Só
depois os fortalezenses tinham acesso a jornais, moda, produtos novos. "A
ligação de Sobral com o mundo era via Camocim. Não precisava da Capital. Em
algum momento, o Porto de Camocim era mais interessante que o Porto de
Fortaleza, porque não tinha problema de atracação. O de Fortaleza, na Praia de
Iracema, enfrentava um mar muito agitado".
Após o
fim
O historiador destaca que, com
a ligação Porto-Ferrovia, Camocim se desenvolveu. Sobral já era um polo antes.
Posteriormente, Ipu e Crateús seguiram o mesmo caminho. "Com o fim da
Ferrovia, todos, com exceção de Sobral, tiveram que buscar outras fontes.
Camocim tinha a tradição pesqueira, a vocação turística. Isso, de alguma forma,
foi a salvação. Mas outras cidades começaram a declinar".
Com isso, veio também o
declínio do patrimônio: "Entre Sobral e Camocim, foram arrancados até os
trilhos. Só no fim dos anos 1980 é que a Estação de Camocim foi tombada pelo do
Estado. Mas, até então, vivia numa degradação total, estava para cair. Hoje lá
funciona a Secretaria de Educação. Mas, no caminho de Camocim a Sobral, algumas
estações estão em petição de miséria", lamenta.
Ele destaca que, no caso de
Camocim, há um processo de tombamento de toda a área do Porto e da Estação
Ferroviária, o chamado patrimônio ferroportuário. "No momento em que isso
for deslanchado, toda aquela área e ruas próximas serão tombadas para termos um
Centro Histórico".
O historiador considera a
retirada do trem um verdadeiro crime para aquelas cidades. "Em toda essa
região cerca de seis cidades usavam esse transporte. Naquele momento, também
estava havendo uma retração da economia e servia mais como transporte de
passageiros. Mas a Rffsa deixou o material rodante entrar em desuso, e isso ia
tornando os trens em condições miseráveis de uso, sem falar que esse é um
momento em que a indústria automobilística entra forte no País e os
investimentos se voltam às rodovias e ao transporte rodoviário", diz.
Ele acrescenta que,
adicionalmente, em 1950, houve a ligação de Sobral a Fortaleza, via Itapipoca,
e esse ramal Sobral-Camocim passou a definhar mais ainda porque não precisava
mais ir ao Porto de Camocim para escoar os produtos. De Sobral ia para Fortaleza.
Carlos Augusto conta que,
assim como Camocim era distrito de Granja, depois de Granja só tinha Sobral. As
outras cidades foram se emancipando com o desenvolvimento proporcionado pela
Ferrovia. Massapê se emancipou de Santana do Acaraú. Senador Sá se emancipou de
Massapê. Uruoca se emancipou de Granja e Martinópole também. Eles tinham certa
atividade, principalmente agropecuária. A partir dali, iam se criando
comerciantes, políticos e isso favoreceu que esses povoados fossem sendo
emancipados das suas sedes.
"Socialmente, também se
perdeu. O trem exerce fascínio logo na chegada. Diferente do ônibus, chega
apitando, acorda a cidade. Antes, o tempo era medido pela chegada e saída do
trem. Se perdeu um pouco dessa nostalgia dos apitos, como eu chamo no livro. É
uma questão política. Privilegiaram a indústria automotiva, enquanto, na
Europa, o trem é um dos principais meios de transportes", diz.
Alexandre Maia, procurador
geral do Município de Camocim, afirma que o prédio da Estação Ferroviária hoje
está com a estrutura preservada. "Segundo ele, o Município pleiteou, junto
à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), a cessão do imóvel para fazer a
revitalização.
Granja
Em Granja, há dois importantes
patrimônios ferroviários: a Estação, de 1881; e a Ponte sobre o Rio Coreaú, de
1879. Maria Ximenes, secretaria Municipal de Cultura, conta que a Estação
estava em um estado lastimável e que foi feito um projeto e iniciada a
restauração. "O Iphan fez algumas exigências técnicas, esse processo já
está resolvido. Agora, o serviço será retomado e há uma proposta de colocar lá
uma central de artesanato, incluindo oficina e venda, e também um café com
espaço para exposições, saraus, shows", revela.
Memória
Na
Oficina do Urubu, de 1930, funcionou, entre 1982 e 1997, o Centro de
Preservação da História Ferroviária do Ceará, instalado pelo museólogo
português João Alfredo Sá Pessoa, professor aposentado do Curso de Arquitetura
da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele conta que o acervo foi transferido
para a Estação João Felipe, no Centro, sob os cuidados da Associação dos
Engenheiros da Rffsa. As instalações da Oficina, localizadas na Avenida
Francisco Sá, no bairro Álvaro Weyne, sediam hoje a Transnordestina Logística
(TSL).
Conteúdo publicado originalmente pelo Caderno
Doc. do Jornal Diário do Nordeste