É meio-dia. O sol está a pino,
o mormaço sobe do asfalto pedregoso de uma avenida movimentada de Fortaleza -
mas ela segue caminhando descalça, carregando quase 800 quilos de telhas nas
costas, sem água nem comida há sabe-se lá quantas horas. A imagem parece cruel
assim, mas quando vista nas ruas da Capital é naturalizada - já que mesmo sendo
proibida por lei desde 2016, a utilização de cavalos, jumentos e burros para
carregar materiais de construção continua em prática, tendo vários flagrantes
registrados pela reportagem do Sistema Verdes Mares em dois dias.
A rotina extenuante de
transportar cargas de até 300 telhas pelas ruas do bairro Dias Macedo, das 7h
às 17h, sacrifica a burra "Furiosa" todos os dias. O animal se soma à
frota de dois carros 4x4 que realizam entrega de materiais para um depósito da
Capital.
O entregador Alberto José, 65,
monta no animal há quatro anos, e revela que o proprietário do estabelecimento
sabe da proibição. "Ele deixa comigo porque eu dou ração, zelo, cuido como
se fosse minha, mas já disse que quando eu me aposentar ele vende ela",
afirma, reconhecendo os maus-tratos que estão além de qualquer lei. "Se
até a gente cansa, avalie um bicho, né?" A reportagem pediu o endereço do
comércio ao funcionário, mas ele se recusou a fornecer.
A falta de opção de transporte
e trabalho para o dono é o que pesa sobre o corpo de "Cachorrinho",
cavalo do pedreiro Fábio de Lemos, 35 - que mesmo transportando entulho e
móveis como bico para driblar o desemprego, garante cuidar do bicho até melhor
do que a si mesmo. "Isso já vem de muito tempo. No trânsito é que é
perigoso, né? E o animal não nasceu pra trabalhar não. Nasceu pra viver
solto", diz, enquanto amarra as cordas que prendem "Cachorrinho"
à carroça e ajusta a focinheira de ferro para cobrir as feridas na face do
equino.
Maus-tratos
O Conselho Federal de Medicina
Veterinária (CFMV) descreve como situações de maus-tratos as
"caracterizadas por agressão física ou psicológica, abuso, negligência ou
qualquer ameaça ao bem-estar de um indivíduo". Essas ameaças podem ser
nutricionais, como submissão do animal a "fome e sede prolongadas e
subnutrição"; ambientais, quando não se fornece "abrigo e superfícies
adequadas para caminhar e descansar, em situação climática de conforto térmico e
ambiente higienizado"; de saúde, se "o animal tem dor, doenças e
ferimentos"; ou, ainda, comportamentais, quando se nega ao animal o
direito de "estar livre para exercer seu comportamento natural".
A ausência de cuidados e a
constante exposição dos animais a uma exploração além dos limites físicos são
uma combinação fatal, como alerta o vice-presidente da ONG Deixa Viver, Marcel
Girão, que trabalha pela proteção dos animais. "Recentemente, mais de um
animal morreu por abusos. Eles morrem de desidratação, fome e calor. No horário
mais quente do dia, estão sendo explorados com altas cargas na carroça. Eles
fazem muita força e desabam."
Em Fortaleza, uma das áreas
onde a prática é mais comum, conforme atesta o ativista, é a Regional I, que
concentra bairros periféricos. "Além de materiais de construção, os
cavalos puxam garrafão de água, famílias inteiras em subidas, em pleno sol de
meio-dia. Um animal que se desenvolveu para andar em terra precisa pisar num
asfalto quente, muitos deles levando chicotadas e sendo perfurados para andar
com mais velocidade".
Lei falha
Para Marcel, a cobrança de uma
fiscalização mais presente e efetiva é fundamental para mitigar o problema.
"A mudança dessa cultura vai acontecer quando o Poder Público fiscalizar
junto com as ONGs. Nós interceptamos trabalhadores que passam utilizando
carroças e tentamos conscientizá-los, mas quando damos as costas, continuam
explorando os animais", lamenta.
A presidente da Comissão de
Defesa dos Direitos dos Animais da OAB/CE, Lucíola Cabral, classifica como
"absurda" a tipificação prevista em lei. "A lei que existe hoje
se restringe a proibir transporte de material de construção, o que é um
absurdo. Porque carga é carga", critica a advogada, afirmando que uma
"regulamentação mais detalhada" está inclusa no Código da Cidade, que
tramita, atualmente, na Câmara de Fortaleza.
Identificar
A deficiência de fiscais e a
não inclusão dessa pauta entre as prioridades rotineiras deles são, de acordo
com Lucíola, duas outras deficiências da legislação. "Isso é tão
importante quanto alguém derrubar uma árvore, construir irregularmente, aterrar
um riacho. A Agefis (Agência de Fiscalização de Fortaleza) tem, hoje, oito
veterinários que são fiscais. Ninguém melhor do que eles para identificar os
maus-tratos e os problemas sofridos pelos animais".
Outra falha, conforme avalia a
presidente da Comissão, é a penalidade prevista. Atualmente, quem descumprir a
legislação está sujeito a multa no valor de R$1 mil, apreensão do veículo e
cassação de alvará de funcionamento do estabelecimento comercial. "Mas não
basta retirar a carroça, é necessário criar um local apropriado para recolher
os animais e encaminhá-los para adoção ou o que for. E, em se tratando de
animais de grande porte, isso é bem mais complicado", critica a advogada.
No Diário do Nordeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário